Articulação de iniciativas de geração de renda a partir das espécies nativas
CADEIA PRODUTIVA SOLIDÁRIA DAS FRUTAS NATIVAS DO RS
* Por Jairo Antonio Bosa [1]Jairo Antonio Bosa é Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Universidade Federal do Paraná, Mestre em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa … Continue reading
Quem nos dias atuais conhece, já experimentou ou então quer provar o sabor de um picolé de uma fruta nativa chamada guabiroba? Ou então um suco de uvaia, butiá, araçá? Quem conhece o potencial de flores, frutas, folhas, raízes e cascas de espécies nativas para a produção de alimentos ou extração de essências, fabricação de cosméticos ou produtos para tinturaria natural?
Pode parecer estranho ou até improvável que famílias e comunidades saibam e utilizem essas plantas, seja para seu uso ou para fazer produtos que são vendidos em grandes centros urbanos do sul do Brasil, como Porto Alegre e Florianópolis. Mas é precisamente isso que vários grupos, rurais e urbanos, vêm construindo já fazem alguns anos.
Esses grupos formam a Cadeia Produtiva Solidária das Frutas Nativas do Rio Grande do Sul (CPSFN). Com base em uma organização ‘em rede’, ou seja, sem um espaço central de poder, mas com vários integrantes dividindo funções e responsabilidades na cadeia produtiva, é fundamental que os métodos e a dinâmica das ações e da organização, além de distribuídas, sejam bem assumidas e desempenhadas por todas as pessoas e os elos envolvidos no processo.
Esta ‘rede’ envolve um conjunto de atores de diferentes perfis, que atuam de forma complementar uns aos outros, formando uma organização produtiva que inicia nas pequenas propriedades rurais até chegar aos consumidores, passando pelo processamento, conservação, transporte e comercialização dos produtos. Então, entre esses distintos atores estão famílias agricultoras, equipes técnicas de entidades de assessoria e de pesquisa (como ONGs e universidades), empreendimentos de economia solidária, da gastronomia (restaurantes e chefs) e de comercialização dos produtos.
É deste conjunto de atores sociais e etapas que eles cumprem na cadeia produtiva que se forma a ‘rede’ ou, como se denominam, a Cadeia Produtiva Solidária das Frutas Nativas (embora o leque de opções esteja aumentando e hoje trabalham com espécies e produtos que vão além das frutas e da alimentação).
O surgimento da Cadeia das Frutas Nativas tem uma importante contribuição da experiência de trabalho do CETAP e do Encontro de Sabores. No CETAP, as discussões referentes à implantação de sistemas agroflorestais (SAFs) e valorização das frutas nativas iniciaram por volta do ano 2000 com famílias e grupos de agricultores assessorados pela entidade. O avanço da discussão e de experiências com SAFs e frutas nativas envolvendo outras organizações da promoção da agroecologia, em conjunto com iniciativas de economia solidária, criou a demanda e as condições para a articulação em nível de estado.
Estudo em andamento
Durante o ano de 2021, um estudo a partir do ponto de vista das pessoas e entidades que participam da CPSFN vem procurando compreender como o processo é organizado e quais os avanços, as dificuldades e os potenciais que esta experiência tem para ampliar seu alcance e se consolidar. O estudo demonstra que a Cadeia Produtiva integra um conjunto de dimensões da vida das pessoas e suas comunidades. De modo geral, todas essas dimensões são valorizadas e bem avaliadas por quem integra o processo, demonstrando a satisfação das/dos participantes em relação ao trabalho com as espécies vegetais nativas.
No aspecto ambiental, destaca-se a ‘conservação pelo uso’ (quando o manejo e uso das espécies é fator importante para sua reprodução e conservação) e a restauração ecológica, além da diversidade de espécies manejadas.
Quanto à dimensão social, é mencionada a diversidade de atores e formas de organização (informal, associativa, comunitária, institucional) que compõe a cadeia produtiva e a melhoria na qualidade de vida das famílias do campo e dos empreendimentos urbanos.
Em termos econômicos, destaca-se a geração de renda com a comercialização dos produtos (mas também a renda indireta com a subsistência) e o fato de articular famílias agricultoras e empreendimentos urbanos de economia solidária que atuam no processamento e na comercialização.
No aspecto político, é enfatizada a ação local e o fortalecimento político desses atores e suas propostas (como a conquista da certificação agroflorestal). No entanto, este trabalho precisa ser mais divulgado na sociedade para ganhar maior força e alcance nas políticas públicas.
A dimensão cultural é enfatizada pela percepção da valorização e do resgate de saberes associados à natureza e aos usos e manejos das espécies. Também se destaca o fortalecimento da solidariedade entre as pessoas, famílias e grupos sociais.
Em relação ao conhecimento, foi destacado o resgate de saberes das comunidades (espécies, usos, manejos) e sua complementação no diálogo com conhecimentos técnicos. O trabalho também vem despertando o interesse e a geração de pesquisas científicas.
Desafios e potenciais de crescimento
Um dos desafios atuais dos grupos que compõem a cadeia das frutas nativas é melhorar as condições e aumentar os volumes de produtos comercializados. Para isso, é necessário uma boa articulação e eficiência nas ações entre a produção, o processamento, o transporte e, enfim, a comercialização.
Uma das condições para tais melhorias é a capacidade de logística, que inclui a conservação (climatização) e o transporte dos produtos. Os grupos envolvidos reclamam a falta de políticas públicas de apoio, de modo especial, na facilitação de acesso à estruturas para as diversas fases da cadeia produtiva.
Por outro lado, como perspectiva, vários potenciais são citados. Um deles é que as plantas nativas representam uma importante fonte nutricional, sendo que algumas espécies têm alta produtividade por área e, por serem nativas ou bem adaptadas, não apresentam grandes problemas de doenças ou ataque de insetos, facilitando o manejo ecológico.
Além disso, o trabalho articula a proteção das espécies com alternativas socioprodutivas (sociais e econômicas) e enfrentamento à crise ambiental. Experiências como essa devem inspirar e merecer o apoio de governos e instituições internacionais que se reúnem e não chegam a acordos para soluções eficazes para os problemas climáticos, como aconteceu recentemente na COP26[2]COP26 é assim denominada por ter sido a 26ª reunião da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, realizada em novembro de 2021, na Escócia. Apesar dos estudos científicos e as … Continue reading.
As lideranças da cadeia das frutas nativas também destacam o potencial de consumo que se apresenta nos grandes centros urbanos. Segundo um depoimento, os consumidores estão “ávidos por produtos com estas características”. Neste mesmo sentido, é citado o potencial que estas iniciativas têm de serem geradoras de articulação e de ação coletiva, pois são vários elos desde o campo até a cidade que precisam e podem se encontrar para discutir e organizar todo processo de trabalho ‘em rede’. Isso gera a construção de outras formas de produção, consumo e compartilhamento de aprendizados, de tomadas de decisões e dos ganhos com o uso sustentável das espécies nativas.
Portanto, o conjunto desse trabalho traz uma importante contribuição tanto para o campo da agroecologia quanto para o da economia solidária, na medida em que: a) parte das espécies e produtos da sociobiodiversidade; b) promove o diálogo e a organização entre os diversos atores, buscando gradativamente incluir os consumidores (cumpre um papel de articulação entre a produção, as políticas públicas e a sociedade); e c) promove a soberania e segurança alimentar e a renda a partir de novas relações socioeconômicas.
Conforme as palavras de quem participa da construção da Cadeia produtiva: “Articula proteção das espécies com alternativas socioprodutivas relacionadas às agroflorestas e agroecologia”. Assim, além dos ganhos às famílias e comunidades, contribui para a restauração ecológica e enfrentamento às mudanças climáticas. E, desta forma, a Cadeia Produtiva Solidária das Frutas Nativas do RS vem dando passos importantes na construção social de um novo paradigma de economia, de base ecológica e solidária.
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Este estudo em andamento conta com o apoio da Fundação Interamericana (IAF), através do projeto de cooperação para promoção da agricultura sustentável e segurança alimentar e o fortalecimento de canais de comercialização que conectem produtores e consumidores, promovendo a alimentação saudável.
Notas
↑1 | Jairo Antonio Bosa é Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Universidade Federal do Paraná, Mestre em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina. |
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↑2 | COP26 é assim denominada por ter sido a 26ª reunião da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, realizada em novembro de 2021, na Escócia. Apesar dos estudos científicos e as análises dos governos apontarem para o aumento da gravidade das mudanças climáticas decorrentes da degradação ambiental, especialmente vinculada ao desmatamento e à emissão de gases, as metas aprovadas ainda são extremamente tímidas para reverter o processo de aquecimento global e suas consequências para todo o planeta. |